Quando a surdez é da alma...
Há
um dado momento que marca cada fase de nossas vidas. Hoje (12 de setembro),
acredito que estou num deles (reflexiva), vivenciando a primeira aula integral remota
com um professor surdo – “inédita no mundo dos surdos” (NEMBRI, 2020)... Após
mais de meio século de vivências, acreditando que compartilho a vida e as
experiências com o meu próximo (às vezes pouco próximos e outras vezes com
desconhecidos que cruzam caminhos), hoje percebo que muito deixei de fazer
quando ainda poderia fazer a diferença na vida de tantas pessoas... Inclusive
na vida da minha mãezinha, que teve perda auditiva bilateral severa na primeira
infância em (provável) decorrência/sequela da meningite, sendo agravada ao
longo da vida e perdendo os poucos sinais sonoros e a leitura labial
gradativamente em sua fase mais adianta. Assim, acostumada à comunicação por
meio da leitura labial, ensinou-nos a viver e conviver - o que, com o passar do
tempo e a condição degenerativa da doença na senescência, precisou de muita
criatividade e conexão de almas para dar conta do que verdadeiramente é imperceptível:
o dia a dia, as necessidades básicas e a manutenção da amorosidade que sempre
esteve presente.
Se não fiz o mal (creio nisso), o bem mais necessário, posso ter deixado de
fazer. Por desconhecimento ? Por imaturidade ? Por dar mais atenção e valor a
outras ações ? Talvez um pouco de cada ? Sim, reconheço minhas limitações. Mas,
sem negar e reconhecendo, também, o quanto abro meu coração e minhas muitas horas
de vida em prol do outro (fruto do autoconhecimento). Então, deixando a
“culpabilidade” de lado (outro valoroso fruto do autoconhecimento), mergulho na
correnteza dessa grande questão que foi minha companheira por mais de cinco
décadas: o mundo das pessoas com deficiência auditiva – perda (seja leve ou
total) da capacidade auditiva.
Primeiramente, quero deixar aqui meu entendimento sobre a temática, regado de
gratidão em conviver com pessoa tão doce, serena e guerreira que foi minha
mãezinha, mas também em conhecer, nesse momento de minha vida, tão nobre e
encantadora pessoa que não somente sonorizou a surdez da minha alma, mas também
iluminou a minha visão (mais à frente relatarei e vocês entenderão o porquê). O
Ministério da Saúde define surdez como sendo o “nome dado à impossibilidade ou
dificuldade de ouvir” – o que remete a alguma causa, congênita ou adquirida, que afeta o sistema de audição. Mas, se sou dotada dessa audição, o
quê muitas vezes me impede de ouvir? E paro para ouvir silenciosamente a voz ensurdecedora
de meus pensamentos...
Faço uma viagem ao tempo e penso no que poderia ter feito ainda quando trilhava
pela estrada da Educação, como por exemplo: incluir a disciplina de LIBRAS no
currículo escolar e, consequentemente, incluir o aprendizado da língua no
universo dos vários profissionais da Escola. E não somente abrir as portas para
o aluno surdo (ou com a diversidade de classificações da deficiência auditiva);
nem apenas conviver com pessoas surdas; nem tão pouco, me desculpando por não
compreender sua forma de comunicação. Sim, uma escola que todos os sujeitos
possam ensinar e aprender com suas particularidades! Imaginem, por exemplo, a alegria dos
miúdos (e a nossa, dos bem graúdos) ao conseguirem estabelecer uma conexão com
outra pessoa em outra língua - o que nos tornaria bilíngues segundo o currículo,
mas de fato humanos conectados naturalmente e com uma valorosa bagagem no
avançar da vida...
Não precisamos, por exemplo, esperar uma lei para chancelar uma prática tão humana e educada quanto às atitudes básicas que aprendemos desde cedo: “dar bom dia, agradecer, pedir licença, etc etc”... Mas, se para tornar factível a convivência humana num mundo de multiplicidades, que venham as leis! E que sejam cumpridas, atualizadas e em acordo com as transformações dos tempos, a diversidade cultural e as necessidades da humanidade. Neste contexto existem algumas iniciativas no Brasil que fundamentam o universo das pessoas com deficiência auditiva: desde a tardia regulamentação da Língua Brasileira de Sinais, em 2005, pelo Decreto nº 5.626, mesmo sabendo que a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) entrou em nossa pátria (mãe gentil) em 1857, mas somente depois de mais de um século e meio é promulgada a Lei nº10.436/2002, reconhecendo a LIBRAS como meio legal de comunicação e expressão da comunidade surda; quase dez anos depois, é criado o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência e o Plano Viver sem Limite, por meio do Decreto nº 7.612/2011 e, em 2015, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com deficiência e o Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei nº 13.146.
Tão materna quanto a nossa língua Portuguesa, é de fato todas as línguas que permitem nos relacionarmos com a compreensão de seus códigos, sinais, estruturas e sistemas. Cada qual com suas características e todas igualmente ricas, complexas, “desbraváveis” e que deveriam ser conhecidas por todos (NEMBRI, 2020, p.1). Que maravilha seria se, desde a mais tenra idade, pudéssemos nos comunicar sem prejuízos para as partes, utilizando as ferramentas disponíveis por toda a sociedade, e assim naturalmente e respeitosamente nos relacionarmos, seja usando a língua portuguesa, seja a língua de sinais, dando movimento ao amor ao próximo e mantendo vivos e ativos nossos princípios e valores, base de nossa essência, por natureza humana.
Quanto à maternidade (não sobre a língua e sim sobre a nossa), a ciência comprova que nascemos únicos e por isso temos nossas especificidades (“Somos obras exclusivas”, NEMBRI, 2020). Contudo, passamos muito tempo de nossas vidas buscando explicações e tentando aceitar nossas limitações e diferenças (quando essas são visíveis ao nosso olhar, ou melhor, à possibilidade de ouvir a nossa alma). Levamos outro tanto de tempo para reconhecer a igualdade nas diferenças. Lutamos para que os outros compreendam como somos. E deixamos para depois (e às vezes muito depois), aceitar e compreender o outro no seu universo particular.
Reconhecendo que tudo dito aqui só pude externar, porque me permiti a reflexão;
colori os
conhecimentos compartilhados (em especial, nesta aula de Educação Especial – áudio
comunicação) e os vejo borbulhando em minha mente (já não tão surda); me reconheci como agente passivo (embora difícil de
aceitar e declarar) desse contexto, despertei para a ação (ainda muito
limitada) e estou pensando nas ferramentas que posso usar (por exemplo, estas
palavras para os ouvintes, externando o colorido que ganhei para os meus conhecimentos).
E, lógico, porque tenho o domínio da língua dos ouvintes, mas sabedora (por
experiência própria) de que muitos irão ouvir e outros (assim como eu estive
por longo tempo) ainda permanecerão na surdez e na cegueira de sua alma.
Minha limitação não está somente no reconhecimento dos fatos e naquilo que pode
ser um novo começo, mas na inquietude e na sensação de impotência ao me
relacionar com as especificidades do outro (neste caso o surdo físico, pois não
possuo domínio na Língua Brasileira de Sinais – o que reconheço, também, que
oportunidades não me faltaram ao longo da vida). Já sinto que venci a surdez da
alma e tenho certeza que conseguirei estabelecer gradativamente boas e
frutíferas conexões. Posto que em qualquer língua, a humanidade luta por seus
ideais (o que me remete às leis da natureza - outro capítulo para boas
reflexões e ações).
Se vocês leitores ouvintes ou não audíveis que dominam as duas línguas, leitores de almas e tradutores de LIBRAS quiserem mergulhar também nesse despertar, sugiro que deem uma espiadinha no Instagram @armandonembri . Esse autor é o segredinho do meu despertamento. Obrigado, Professor !
Em tempo:
Compartilho, também, as leituras que pude fazer nessa última semana e que me ajudaram a construir tantas reflexões... Entre outras publicações do autor na coletânea indicada abaixo, no Instagram e por meio de suas expressões durante a aula:
NEMBRI, Armando. Um surdo definindo a surdez... e em bom português. Coletânea de textos para reflexão da disciplina Educação Especial: Áudio e Comunicação - acessibilidade atitudinal e introdução a LIBRAS. Educação Especial, Universidade Veiga de Almeida, 2020.